Água, florestas e desmatamento na Amazônia
* Ecio Rodrigues
Há uma premissa relacionada aos
recursos hídricos que os gestores públicos costumam tratar com indiferença: a
quantidade de água existente no planeta é invariável.
Vale dizer, a despeito da mudança
de estado físico – como nos ensinou a professora lá atrás, no ensino fundamental
–, o somatório de água líquida, gasosa e congelada será sempre o mesmo. Por
isso, a disponibilidade desigual da água no mundo ou sua migração entre países,
pelos chamados rios voadores, já é causa de disputas em alguns continentes.
Água não se forma nem se
desintegra. Essa constatação deveria ser assumida como diretriz principal para
subsidiar as discussões sobre o uso desse recurso, pois se assim é – e a
ciência não deixa dúvida –, o propósito maior, em âmbito local, deveria ser o
de manter a quantidade de água existente no sistema hidrológico.
Para tanto, as florestas são peça-chave.
O Brasil é privilegiado por contar
com a Amazônia, uma das regiões com maior disponibilidade de água potável no
mundo, o que reserva ao país uma posição especial na chamada geopolítica da
água.
Como se diz por aí, grandes
privilégios trazem grandes responsabilidades – todavia, neste quesito deixamos
a desejar, e a negligência na gestão dos nossos recursos hídricos, notadamente
na Amazônia, é uma lamentável realidade.
É aí que entra o flagelo do
desmatamento.
Juntamente com as florestas, ano
após ano uma quantidade significativa de água, difícil de calcular, é suprimida
pelo desmatamento. Todos imaginam que essa água retorna na época das cheias,
quando as chuvas quase diárias supostamente recompõem o sistema hidrológico de
cada localidade, mas não é bem assim.
Embora as chuvas do inverno
amazônico ajudem a normalizar o abastecimento urbano, não neutralizam a perda
de água causada pelo desmatamento.
Ocorre que o desmatamento causa assoreamento
dos rios e redução da umidade relativa nas margens: a água da chuva vem e vai
mais rápido.
Manter a água, ou umidade, no
sistema hidrológico é a chave para resolver o problema, e uma das principais
saídas para contribuir com o equilíbrio das bacias hidrográficas é a
conservação da floresta que existe nas margens dos rios e igarapés.
Isto é, as chuvas trazem alento
provisório para o sistema hidrológico local, mas a solução está na restauração
florestal da mata ciliar presente ao longo da bacia hidrográfica.
Mas não só isso. É preciso
atentar também para a quantidade e a qualidade da mata ciliar.
Para explicar melhor: quanto maior a largura da mata ciliar, maior a quantidade
de biomassa presente nas margens para reter umidade; por outro lado, a
restauração deve privilegiar as espécies que favoreçam, ou não prejudiquem, os
cursos d’água.
Significa afirmar que os produtores
devem ser incentivados, ou mesmo obrigados, a manter e manejar as florestas nas
margens dos rios e igarapés que passam pelas propriedades rurais. Sem embargo, como
se viu por ocasião da votação do Código Florestal aprovado em 2012, os nossos
políticos não estão interessados nesse debate.
Finalmente, a despeito da
introdução, nos últimos 20 anos, de um arcabouço normativo relacionado ao uso dos
recursos hídricos, incluindo a criação Sistema Nacional de Gerenciamento de Recursos
Hídricos, constata-se certa dificuldade, por parte do poder público, para gerir
esse tipo especial de sistema, que inclui bens e interesses difusos.
Ao prever a cobrança pela outorga
(a estatais ou à iniciativa privada) do direito de coletar a água no rio para
distribuição, a legislação jogou sobre a Agência Nacional de Água, ANA, uma
prerrogativa para a qual essa agência, na condição de órgão regulador, não estava
preparada.
Desde sua criação, em 2000, a ANA
não consegue avançar na implementação dos instrumentos previstos no sistema, e
os poucos casos de precificação, outorga e cobrança dos direitos de uso dos recursos
hídricos são isolados.
Enquanto não se cobra pela
outorga dos direitos de uso da água, não há dinheiro para remunerar o produtor
que maneja a floresta presente na mata ciliar, a fim de melhorar a qualidade e
a quantidade de água que flui no rio ou igarapé.
Pior, uma vez que a produção de
água não se torna efetivamente um serviço precificado, pelo qual é possível ser
remunerado – em outras palavras, como criar boi dá mais dinheiro que produzir
água –, o produtor rural desmata a mata ciliar para o uso mais abominável: possibilitar
que o boi tenha acesso à água.
Em 2019, o desmatamento dizimou
uma área de florestas equivalente a 9.762 km² – o que representa aumento de
29,5% em relação ao ano anterior e recorde em valores absolutos para os últimos
10 anos.
De outra banda, a proposta
brasileira de zerar o desmatamento ilegal, inserida no histórico Acordo de Paris
– o mais importante pacto global voltado para conter os efeitos das mudanças
climáticas –, ao mesmo tempo em que sugere uma preocupação com as florestas e
com a água que depende dessas florestas, também demonstra que o Brasil está longe
de acabar com o desmatamento legalizado. Esse, sim, o pior dos males.
Passados 20 anos desde a criação da
ANA, pode ser que a aprovação do novo marco legal do saneamento traga a
segurança jurídica necessária à institucionalização do serviço de produção de
água.
Quem sabe o valor da ciência
finalmente prevaleça, e assim se reconheça a importância das florestas para as
águas da Amazônia.
*Professor Associado da
Universidade Federal do Acre, engenheiro florestal, especialista em Manejo
Florestal e mestre em Política Florestal pela Universidade Federal do Paraná, e
doutor em Desenvolvimento Sustentável pela Universidade de Brasília.
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